Sexta, 05 de dezembro de 2025, 07:59

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COLUNA

Aperte o play da caridade — e espere até dos cães, um sinal legítimo de agradecimento

Por Maurício Lopes

Numa das minhas últimas pedaladas — lá pelos arredores do km 14 da BR-316, em Teresina — avistei, uns cinquenta metros adiante, uma movimentação incomum às margens do asfalto. Por precaução, acionei a câmera acoplada à bicicleta. Era um homem com caracteríticas de andarilho, cercado por bugigangas: sacos puídos, câmaras de ar, garrafas PET e um jacá gasto largado sob a sombra de uma árvore. Logo percebi que havia algo errado com o pneu da sua bicicleta. Me prontifiquei a ajudar, oferecendo-lhe remendo e cola.

— Só o remendo, a cola eu tenho — disse ele, direto, sem cerimônia.

Retomei meu périplo, lembrando de uma frase que ouvi em tempos sem internet e cuja autoria nunca descobri: “Ajudar um amigo necessitado é fácil; compartilhar com ele o nosso tempo nem sempre é desejável.” Segui minha rotina de 40 km, feita em dias intercalados. Nenhuma palavra de agradecimento. Apenas uma cachorrinha que me presenteou com um latido afugentador — como se, ela sim, reconhecesse o gesto de altruísmo. Só percebi a cena por completo ao retomar a estrada, quando assimilei que o pequeno caramelo também fazia parte da parafernália e acompanhava o viajante em sua jornada.

Entre bugigangas, um latido e um gesto: a cena que escapou da lente, resgatada com os olhos da IA

No km 18, na localidade chamada Chapadinha Sul, durante a parada habitual para beber água ou tomar um suco que aliviasse o calor dos fins de setembro, fui tomado por uma vaidade altruísta: lembrei que havia filmado o episódio e pensei em como seria fácil transformá-lo em conteúdo para redes sociais. Bastaria postar o “momento ímpar” de caridade para colher curtidas, elogios e aplausos motivacionais. Um empurrãozinho virtual que nos incentiva a buscar, quase ansiosos, mais cenas para gravar e exibir — como se a bondade só valesse se registrada em vídeo.

Que merda! Descobri, para minha própria decepção, que em vez do botão “play”, havia apertado o “off” da câmera. Nada feito.

Na volta, em algum ponto da estrada que já nem lembro qual, avistei novamente o senhorzinho. Agora, seguindo sua viagem, enquanto eu retornava pelo outro lado da BR-316. Com sua bicicleta surrada, o jacá na garupa e, dentro dele, a cachorrinha com a língua de fora e feliz. O homem ainda me acenou com a mão, num gesto breve e tímido.

Pensei: pelo menos conseguiu consertar o pneu.

No fim das contas — e da pedalada — o que realmente importa é que, não interessa a altura em que estejamos, a quilometragem dessa longa estrada da vida ou a condição financeira, social ou emocional em que nos encontramos: Ajude ao próximo sem vislumbrar quaisquer recompensas ou feedbacks virtuais, sem buscar curtidas que massageie o ego. Porque há bondades que não cabem em stories. E de nada adianta exibirmos nossas boas ações em público se, no íntimo, não formos capazes de repartir o bem nem com o nosso próprio eu. E, se um aceno pusilânime do outro lado da estrada lhe for oferecido, ou um latido esfomeado de um caramelo andarilho, aceite de bom grado. Porque talvez esse seja o universo dizendo: “Eu vi.” E isso, meu caro, vale mais que qualquer aplauso.

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