Segunda, 10 de fevereiro de 2025, 22:27

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Quem carrega consigo o endereço que mostra o caminho da volta?

Por Maurício Lopes

Tenho o hábito de revisitar filmes, livros e músicas, retornando às mesmas obras inúmeras vezes. Já reli O Cortiço cerca de três vezes e assisti a O Pianista tantas vezes que perdi a conta. Minha playlist musical é um mergulho nostálgico em décadas passadas, raramente explorando algo novo. Recentemente, O Auto da Compadecida, uma obra marcante em minha lista de revisitações - e acredito de muitos aqui, ganhou uma nova versão, o que reacendeu meu entusiasmo. Quem mais conhece alguém que compartilha esse fascínio por revisitar o conhecido, em vez de buscar o inexplorado?

Além hábito natural, de reassistir aquilo que me interessa, um outro episódio me levou a revisitar recentemente o filme Eles Não Usam Black-tie. Deparei-me com um vídeo nas redes sociais, de um político de renome nacional – notório por envolvimentos em escândalos – recomendando obras que, segundo ele, “emocionaram muito”. Em um cenário luxuoso, dentro de uma piscina que exalava ostentação, o pretenso crítico de cinema, mencionou três obras, entre elas a adaptação da peça teatral de Gianfrancesco Guarnieri. O contraste entre o ambiente nababesco onde o ex-gestor parecia alheio às dificuldades cotidianas, e o cenário do filme, permeado por pobreza e conflitos, despertou minha curiosidade: o que teria levado esse político a se identificar com essa produção?

Para quem não conhece, Eles Não Usam Black-tie aborda as tensões de um movimento grevista em uma fábrica, que acaba reverberando o conflito para dentro do seio familiar. Tião, um operário, enfrenta um dilema ao decidir “furar” a greve liderada por seu pai para não perder o emprego e sustentar sua namorada grávida. Romana, a matriarca da família, preocupada com o marido e o filho, aconselha-os antes do tenso dia da paralisação: “Tá com o endereço daqui no bolso? Se acontece alguma coisa, a gente sabe logo.”

O objetivo de fazer a ligação entre o famoso político e a trama ficou para um segundo plano. Acabei encontrando algo que reputo mais significativo ao rever o filme: uma reflexão sobre o valor do "endereço" no bolso, que vai além de um simples pedaço de papel. A frase de Romana ressoou a mim como um lembrete de que, por mais distante que possamos ir, sempre estamos ligados às nossas origens.

O "endereço" torna-se, assim, uma metáfora poderosa. Seja um político contrito tentando ressignificar suas escolhas ou um CEO de sucesso que ascendeu de forma meteórica, todos carregamos conosco as bases que nos moldaram. Esse "endereço" é o lugar de onde partimos, mas também o ponto para o qual podemos retornar – para recomeçar após um fracasso ou reconhecer a trajetória que nos levou ao fastígio de nossas carreiras. Voltar, também, pode servir para nos lembrar de onde viemos, no sentido filosófico da caminhada. É uma forma de renascer, de reafirmar nossa identidade - e não somente nos reconduzir ao ponto de origem, afinal, como já disseram, “ninguém se perde no caminho de volta”.

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